Escrito por
Gláuber Sampaio
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Sabe aquele momento em que “a ideia” simplesmente brota na sua mente, tudo parece se encaixar perfeitamente bem e todas as nuances estão super resolvidas? Daí você senta confiante no computador, abre um programa de edição e como num passe de mágica a ideia original começa a mudar e desaparecer igual algodão doce na água.
Uma ideia, ao nascer, precisa sobreviver à barreira de imigração da técnica e manuseio da ferramenta para embarcar na cidade da realidade. Nesse momento crucial, meio de vida e morte, em que se tenta fazer o conceito ganhar vida, cada clique no mouse parece puxar mais um monte de preocupações técnicas, colocando tudo à prova de fogo a cada segundo: é essa a tipografia que dá o tom? É esse o formato correto? Preciso mesmo usar grid no início? E se eu começar por um pôster ao invés de uma interface de app?
Saber conduzir e evoluir um conceito, da mente à tela, é um processo que exige prática e requer, de certa forma, o correto gerenciamento das expectativas e prioridades em cada estágio dessa evolução.
Ilustração de Agnes Pinhanelli.
Quando eu tinha 11 anos de idade, decidi que queria aprender a tocar piano, igual ao meu pai. Através de uma apostila, aprendi acordes maiores, menores, solfejo, ler cifras e várias regras básicas de ritmo e composição de acordes. Devorei aquilo tudo em uma semana. Decorei tanto que na semana seguinte já estava demonstrando o pouco do que sabia tocar. A medida em que fui buscando aprender novas músicas, principalmente as mais complexas, vivia esbarrando na falta de cifras pela internet. Se não tinha cifra, eu não tocava. Ler cifras se tornou uma grande descoberta e forma de exercer a criatividade musical, mas também um motivo de impedimento.
Lembro de ouvir isso do meu pai: “a música está aqui” – apontando para a cabeça – “e não no instrumento”. Continuou: “o instrumento apenas faz o som que você conduzir, não o contrário. Se você não tem a cifra, tente reproduzir a música que está vindo daqui…”, apontando para a orelha. Era o que ele chamava de “tocar de ouvido”.
Tocar piano “de ouvido" era um conceito fácil de assimilar, mas difícil de exercitar, já que eu havia começado a partir das regras. Ouvir uma música – ou imaginar uma – e tentar reproduzir o que eu ouvia, era uma novidade. Só com a prática diária em executar o que o meu “ouvido interno” ouvia, foi quando finalmente (e vários anos depois) dominei o processo.
Esse exercício requer buscar parear num instrumento os mesmos acordes e ritmos que se ouve mentalmente. Fui aprendendo a não descobrir no piano o próximo acorde, pois ele estava aqui – aponto para orelha. Eu não deveria tocar nada que eu ainda não tivesse “ouvido”. Simples, mas nada fácil. É tentador sair tocando todas as notas, aleatoriamente, na tentativa de prever e acertar o próximo som.
Foto por Leigh Cooper / Unsplash.
Depois que me tornei designer, esse conceito ganhou um novo lado. Me encontrei em momentos onde uma ideia estava pronta para sair da cabeça, bem formulada, funcionando e incrivelmente executada. Mas bastava a mão tocar o computador que aquilo simplesmente virava outra coisa – às vezes completamente distante da expectativa inicial.
Passei então a praticar o conceito de “ouvido interno”, só que visual. Poderia até chamar de “tela interna”, talvez. Busquei exercitar a liberação crua de uma ideia com o mínimo de impedimento possível. Tentar me conectar ao máximo com a imagem mental e através de poucas técnicas tornar aquilo uma realidade.
Da lição aprendida no piano, vi que eu deveria guiar o instrumento e não se deixar ser guiado. Nesse processo de colocar para fora o que se visualiza mentalmente foi necessário vencer essa barreira de tentar descobrir na ferramenta qual o próximo passo. Mas claro, não ignoro o fato de que o conceito visual pode mudar para melhor – por vezes intencionalmente – à medida em que a ferramenta vai sendo manipulada. Contudo, me limitando apenas ao estágio inicial de um conceito, colocar preocupações técnicas no meio do caminho pode danificar o efeito de descolamento – o momento em que ocorre a “extração” da mente à tela.
Ilustração de Agnes Pinhanelli.
Até aqui você já deve ter lembrado de situações próprias em que tentou tirar aquela ideia da cabeça tomando os cuidados para não se distrair. Cada pessoa tem seus próprios métodos, seja através do silêncio, da alta concentração, do compartilhamento e até do completo caos.
Nelson Balaban, designer e diretor de arte, diz que evita se debruçar em inúmeros esboços. “Abro um pouco mão da técnica e procuro trazer a essência dessa visualização, para que então, só depois, eu analise as variáveis técnicas para o resultado”, diz ele, ao justificar que, dessa forma, o conceito imaginativo é transferido para a realidade o mais fielmente possível.
Trabalhos de Nelson Balaban, designer e diretor de arte.
Parecido com a técnica exercitada por Nelson, algo que tem funcionado para mim é buscar materializar primeiro aquilo que fica mais nítido. Pode parecer viagem, mas uma ideia chega para mim como uma imagem onde alguns elementos ficam desfocados e outros mais perceptíveis. Busco desenhar as partes que são mais fáceis de “enxergar” e que me deixam mais próximo da visão. Quando me certifico de que capturei a essência do que visualizei mentalmente, a evolução na ferramenta procura apenas chancelar a sensação inicial.
Experimentos com código de Guilherme Vieira, designer e co-fundador do Estúdio Daó (SP).
Guilherme Vieira, designer e co-fundador do Estúdio Daó (SP), acredita que existem muitos caminhos que levam uma ideia mentalizada a um resultado concreto e é preciso estar aberto aos possíveis desfechos. “No meu processo criativo, tendo a ser bem racional. Independente do resultado final, sempre planejarei todas as etapas para executa-lo e isso vai sendo compartilhado com pessoas próximas, sempre que avanço”. Desse modo, Guilherme acredita que é importante estar aberto às opiniões vindas de outras fontes e estar atento aos lugares em que podemos chegar através de erros e acertos. “Nem sempre o que traçamos inicialmente como sendo o lugar final é o melhor lugar para se chegar. Estar disposto a absorver e entender as potencialidades de mudanças é fundamental para avançar em direção a qualquer resultado.”, ele conclui.
Um resultado seja parcial ou final, pode ser tangibilizado através da análise das variáveis técnicas, como pontuou Nelson, e/ou estando aberto às várias possibilidades de desfechos através de interferências externas, seguindo a linha do que disse Guilherme. Ainda assim, como numa espécie de fractal, durante o desenvolvimento do conceito existe um aglomerado de novas ideias que derivam de sua essência (o ponto inicial) e portanto passam pelo mesmo processo de descolagem – dessa vez causados pela aplicação de técnicas visuais, repetidas vezes, até chegar no lugar ideal. Uma atividade que pode ter ramificações infinitas – assim como um fractal.
The Edge of Infinity - Mandelbrot Fractal Zoom (e2011) (4k 60fps). Assistir completo no YouTube.
Contextualizar essa situação é bem fácil, já que está presente no cotidiano de muitas pessoas. Depois que a primeira etapa de descolamento é concluída – quando a ideia nasceu – você agora está numa corda bamba tentando equilibrar todo o seu repertório visual e vícios de produção com as faíscas de novas ideias e técnicas que vão surgindo à medida que você trabalha. Os neurônios à todo vapor começam a fazer associações do que você já fez, já viu, do que gosta, do seu entendimento sobre o trabalho em questão e com isso traça rotas para caminhos originais. Quando decidimos entrar num desses caminhos originais – que por um segundo existe apenas dentro da mente – o processo de descolagem reinicia, agora para fazer essa nova ideia existir na realidade. Assim, todo o processo se repete através de novas situações.
Praticar a ”não interferência“ de ferramentas e técnicas enquanto a extração é realizada (da mente à tela), favorece o surgimento de conceitos mais inéditos, que vão ganhando força toda vez que esse exercício é repetido através da execução (como falei acima). Digo inéditos por acreditar que as ideias que nascem de um “big ben mental” são como uma entidade imaculada, que por brevíssimo momento existem em sua forma mais pura na imaginação, e tão logo sejam materializadas, mudam completamente – seja por intenção, por falta de habilidade técnica ou certa distração durante a implementação da ideia.
De novo, não existe um jeito único de praticar a descolagem. Cada pessoa, na posição de criador, tem seu próprio método de não só ouvir e ver o que acontece dentro da mente, mas também de extrair conceitos com fidelidade. Com toda certeza, o maior benefício que a constante prática desse exercício traz, assim como a criação de métodos próprios de extração, é o de abrir passagem para que ideias que nos trouxeram alguns milisegundos de euforia sejam concretizados. Geralmente são essas as ideias que ocorrem do nada, sem avisar. Um grito de “eureka” interno.