GIOVANI Em 2010 nos conhecemos em um curso de cartazes ministrado pelo Paulo Moretto, curador da exposição “Um Cartaz para São Paulo”. O Guilherme estava se preparando para a WorldSkills Londres e parte do treinamento consistia em estagiar em alguns estúdios de design. Ele desenvolveu um projeto comigo na Sebastiany, onde eu trabalhava na época, e percebemos uma ótima conexão ao trabalharmos juntos. Depois disso, criamos alguns projetos juntos (um calendário utilizando fotografia analógica e dupla exposição, cartazes para um evento de conversas sobre temas diversos, entre outros).
O volume de trabalhos em conjunto começou a aumentar e em momentos diferentes pedimos as contas de nossos antigos empregos para nos dedicarmos mais aos projetos que desenvolvíamos juntos. Tudo foi muito paulatino, tanto que a gente brinca que não sabe quando o estúdio começou; começamos a usar a data de 2014 como referência pois foi quando passamos a assinar em conjunto os cartazes para o Ibrasotope, que eu fazia desde 2008. Eles são um núcleo de música experimental e são os clientes mais longevos do estúdio, dado que ainda desenvolvemos projetos para eles. Trabalhávamos cada um em sua casa e em 2016 passamos a dividir o ateliê do nosso amigo João Livra, da marca Chocolate Notebooks. Em 2017 compartilhamos o espaço da NAU interativa e contratamos a Giulia como estagiária e em 2018 alugamos uma sala própria.
Giulia Fagundes, Guilherme Vieira e Giovani Castelucci no escritório do estúdio Daó, localizado no Centro de São Paulo, na Galeria Califórnia, um dos prédios de Oscar Niemeyer e Carlos Lemos (1955)
GIOVANI Apesar de não usar mais essa definição há quase 3 anos, ao nos descrevermos assim, a intenção era expressar que o prisma do nosso trabalho reflete esses três aspectos: valorizamos processos manuais, gostamos de usar raciocínio lógico e/ou matemático para algumas soluções projetuais e nos dedicamos de corpo e alma aos projetos com os quais nos envolvemos – muitos clientes tornam-se amigos e amigos tornam-se clientes no processo. Paramos de utilizar essa descrição ao notar que a gama de projetos se tornou mais abrangente e nem sempre esses 3 elementos estavam presentes em todos os projetos, mas ainda somos norteados de algum modo por essa definição.
GUILHERME Complementando, apesar de não utilizarmos mais essa definição que tinha esse lado dramático, acho que se pensarmos na alma não só no sentido de ser algo que você está imerso, mas também como algo que se acredita, esses 3 elementos se tornam pilares interessantes para entender se aquele projeto faz sentido para o estúdio. Ou seja, se não houver um envolvimento, uma possibilidade aprender e não nos conectamos nada com conteúdo daquele projeto, esse tipo de projeto talvez não seja o do tipo que mais vai avivar os potenciais do estúdio.
GIOVANI Temos vários interesses que orbitam o universo do estúdio e gostamos de fazer coisas que não necessariamente têm relação com o trabalho – ou até mesmo com design. Eu já organizei com o Paulo Moretto uma série de encontros com pessoas que compartilhavam seus projetos pessoais, fundei uma iniciativa que leva estudantes para visitar estúdios de design e empresas de tecnologia e comunicação ao redor do Brasil e participei de um coletivo que discutia e promovia mobilidade ativa, ou seja, deslocamentos feitos nas cidades utilizando propulsão humana (bicicleta, skate, caminhada etc.) Acredito que esses interesses contribuem com nossa formação como cidadãos e isso pode acabar se refletindo em nossa atuação profissional.
GUILHERME Umas das coisas boas de trabalhar com design, é que uma gama muito grande de experiências podem ser absorvidas como parte do seu trabalho. Acredito muito que construímos e realizamos projetos com a somatória de nossas referências e vivências, então ter projetos paralelos ao estúdio nos permite sempre aumentar as fronteiras do que fazemos no dia a dia do nosso trabalho. Apesar dos meus projetos paralelos terem uma ligação forte com arte e educação que são elementos intrínsecos ao design, acredito que qualquer atividade pode ser esse projeto paralelo. E essas janelas também são formas importantes de desconexão a rotina do trabalho, que por mais que seja fluída sempre tem uma tensão relacionada a expectativas e prazos.
Identidade visual para o 44º Festival Sesc Melhores Filmes do CineSesc SP, em parceria com o designer Pedro Veneziano
Giovani Castelucci, co-fundador e designer do estúdio Daó e Visitei.
GIOVANI Quando eu trabalhei na Sebastiany e na UNO+Brand eu adorava colaborar com os projetos que eles tinham para receber estudantes: a Sebastiany tinha o “Estágio Escola” e a UNO, o “Uno Férias Animadas”. Sempre me interessei em saber como eram os bastidores de empresas e profissionais que admiro – não só designers – e um dia me dei conta que não existia uma iniciativa que servisse como essa ponte entre empresas que querem receber visitantes e pessoas que querem conhecer esses espaços por dentro e os profissionais que trabalham nele. Criei o projeto e um amigo programador desenvolveu a plataforma que automatizava o processo. Em 2017, depois de mais de 70 visitas que levaram mais de 500 estudantes para conhecer cerca de 35 empresas, passei o bastão para o Julio do Coletividad que, além de ser um amigo pessoal, é um profissional que considero brilhante e engajado no trabalho que desenvolve com relação à aprendizagem. Ele ampliou o escopo de atuação do Visitei e hoje acompanho com alegria o quanto o projeto está alcançando muito mais pessoas do que eu poderia imaginar no início.
Sistema de cartazes para o Ciclo de Música Experimental, realizado pelo Ibrasotope na Biblioteca Mário de Andrade.
GIOVANI Sem dúvida. O Guilherme é bem engajado na causa do código aberto e brincamos que nossa gestão também é open source, pois compartilhamos modelos de planilhas financeiras, planilhas de orçamento, briefings e demais materiais de trabalho com amigos e demais profissionais com quem sempre conversamos sobre como é ter uma empresa de design. Quando somos chamados para algum evento geralmente acabamos falando sobre o processo de criação de algum projeto, pois acreditamos que compartilhar esse tipo de informação faz com que mais pessoas utilizem ferramentas e processos de maneira diferente e isso só pode trazer resultados positivos para nossa área.
Cartazes para a segunda edição do Panorama da Luteria Experimental de São Paulo, evento que reúne exposição e performances que utilizam objetos acústicos, eletroacústicos, eletrônicos, digitais e mistos como instrumentos sonoros/musicais.
GUILHERME Eu acredito muito em processos abertos como uma forma de melhorar algo coletivamente. Quando nossos processos são compartilhados, contribuímos para a formação de outras pessoas e aprimoramos nossos próprios processos. Isso é um benefício que é individual e coletivo ao mesmo tempo. E acredito que esses processos abertos não deveriam ser apenas entre pessoas e estúdios, mas principalmente algo que deveria ser inserido também em ambientes de ensino. Vi muito na minha graduação o quanto o não é estimulada a troca de informações e é alimentado o medo de ter uma ideia “roubada”, favorecendo assim uma aprendizagem mais individualizada que se torna no futuro um reflexo do comportamento na área do design em geral.
GUILHERME Quando falam em estratégia em design geralmente associamos apenas ao desenvolvimento de marcas, pois existem vários métodos formalizados em diversas bibliografias e toda uma área do design dedicada a entender e discutir esse processo. Mas eu vejo o conceito estratégico de uma forma mais abrangente, que é inserir uma sólida etapa de pesquisa antes de iniciar qualquer projeto utilizando ferramentas que te ajudem a compreender o contexto do seu cliente e do público do projeto. Dessa maneira é possível alinhar expectativas em relação ao projeto, criar um processo de design mais racional e chegar em resultados mais ricos e assertivos.
Guilherme Vieira, co-fundador e designer do estúdio Daó
GIOVANI Vejo muitas similaridades e uma fronteira difusa entre trabalhos de arte e de design, mas uma característica que, ao meu ver, é bem diferente entre essas áreas é que o design é uma forma de comunicar visualmente uma mensagem. Sendo assim, ela deve ser moldada pelo emissor de forma que o receptor se conecte com o conteúdo do modo mais previsível possível. Essa recepção e o que a pessoa vai fazer com essa mensagem nunca estarão sob controle, e acho que a graça do design é tentar ao máximo chegar numa mensagem percebida do modo mais equalizado possível por todo mundo que a receber. Para isso utilizamos ferramentas e processos que analisam informações e discursos para, através do design, tentarmos moldar essa mensagem de modo a conectar as pessoas à iniciativa de quem nos chamou para desenvolver o projeto. Outro aspecto importante é entender qual a expectativa do cliente com relação ao projeto: diferentes clientes têm diferentes visões do que é “sucesso” ou “eficácia”, e parte do nosso papel é entender qual o resultado esperado após a conclusão de um projeto de design.
Projeto gráfico do livro Transpassar, antologia de poemas sobre as ruas de São Paulo. Em conjunto com Gabriela Pires.
GUILHERME Tendemos a dizer que projetos na área da cultura nos atraem mais, pois são nesses projetos que vemos uma maior liberdade de linguagem e é onde flui mais o trabalho do estúdio. Mas acho que o mais importante do que a temática do projeto ou tipo do cliente, é trabalhar com pessoas que acreditam e gostam do seu trabalho, pois isso evita que o processo seja ruidoso.
GIOVANI Acredito que por nos interessarmos por música, cinema e demais expressões culturais, naturalmente atraímos esse tipo de projeto; e ao ver esse tipo de projeto em nosso portfólio, alguns clientes que atuam nessas áreas se sentem mais confortáveis por terem clareza que conhecemos as particularidades desse segmento. Mas somos abertos a quase qualquer tipo de projeto que nos convidarem, desde que o cliente tenha interesse em trabalhar conosco e com o modo como solucionamos os projetos. Dificilmente dá certo trabalhar com algum cliente que queira pular alguma etapa de projeto ou então que queira que a gente chegue numa solução parecida com o estilo de outros profissionais.
GUILHERME Como comentei sobre os processos abertos, vejo a crítica como parte disso. Nosso trabalho lida com vários aspectos subjetivos – que são mais facilmente assimilados pela troca – e com o ego, e ao fazer ou receber uma crítica, aprendemos a argumentar e a ter uma visão menos individual sobre nosso trabalho. Acredito que os outros ajudam a ampliar a nossa visão sobre algo que estamos imersos, e essa visão quando conciliada proporciona esse crescimento do projeto e individual.
Site e sistema de cartazes para o Campos de Experimentação Sonora, realizado pelo Ibrasotope em São José dos Campos.
GIOVANI Como o Guilherme comentou, trabalhamos o tempo todo conversando e trocando críticas sobre os estudos de cada um dentro do estúdio. Isso é tão enraizado no nosso dia a dia que muitas vezes nem sabemos quem deu cada ideia dentro do projeto, pois tudo se mescla no resultado final. No caso da Giulia, existe uma camada adicional que é tentar fazê-la questionar o tempo todo qual foi o motivo para ela ter optado por cada um dos elementos que compõem os estudos dela para o projeto, dada a experiência que temos e a que ela tem. De modo algum quero dizer que a gente sempre propõe soluções melhores por trabalharmos há mais anos com design, mas isso fez com que a gente tenha passado por mais questionamentos do que os que fazíamos quando estávamos no início da profissão. Acho importante deixarmos claro, ao fazer uma crítica, que ela é única e exclusivamente a respeito do projeto e da solução proposta, e nunca diz respeito à pessoa que a propôs. Esse distanciamento torna o processo mais fluido. Acredito que ninguém melhor que a própria Giulia para falar sobre a forma como lidamos com a crítica no dia a dia do estúdio.
Giulia Fagundes, designer no estúdio Daó
GIULIA Estagiar no Daó e ter o contato com essa forma de trabalho – com a qual eu não estava acostumada, principalmente pela falta dessa cultura dentro da faculdade – foi um choque muito positivo tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Como o Guilherme e Giovani comentaram, lidamos com críticas o tempo todo no estúdio, e para isso precisamos sempre nos colocar tanto no papel de quem teve a ideia – para entender o raciocínio –, quanto no do próprio cliente. Temos que nos perguntar se a ideia faz sentido para o projeto, além do necessário desapego com algumas dessas ideias e estudos. Às vezes o estudo que mais chama a atenção não faz tanto sentido pro projeto quanto o outro, e está tudo bem! Isso é ótimo pois muitas vezes acabamos unindo esses raciocínios e os tornando algo ainda melhor. E aliás, gosto muito da forma com que o estúdio sempre lidou com isso. Desde que entrei aqui sempre fui incentivada a ter meu lugar de fala dentro dos projetos, mesmo com anos a menos de experiência na área.
GUILHERME Pra mim é muito difícil citar uma pessoa para dizer sobre o profissional que sou hoje, pois seria injusto negar que sou uma somatória de diversas pessoas e essa pluralidade é algo importante para mim enquanto profissional. Porém, para não ficar só na resposta inspiracional, meus irmãos são pessoas fundamentais na minha formação visual, tanto como referência quanto na troca delas. A gênese do meu interesse mais afinco pelo design se deu ao conhecer o trabalho dos designers e artistas David Carson e Dave McKean, a forma deles lidarem com esse aspecto autoral no design me aguçou muito o interesse por explorar caminhos que pra mim antes eram apenas possíveis por meio da arte.
Cartaz, programa e site do Festival Internacional de Música Experimental, organizado pelo Ibrasotope.
GIOVANI Acho impossível sintetizar minhas influências em uma ou poucas pessoas, mas é importante citar alguns indivíduos que me inspiram: Ian MacKaye pela sua postura à frente de todas as suas bandas e de sua gravadora Dischord; André Stolarski pela forma como unia gestão e cultura; Deia Kulpas por ter pego minha mão e me guiado quando comecei minha atuação profissional; Stefan Sagmeister pela forma como une interesses diversos à sua atuação profissional; Talita Noguchi pelo posicionamento à frente da sua bicicletaria Las Magrelas; Vanessa Queiroz pela forma como toca o estúdio Colletivo e sempre compartilha sua experiência de modo generoso; meus ex chefes incríveis e antigos companheiros de trabalho que me mostraram diferentes formas de trabalhar e de gerir um negócio.
Além de uma série de amigos que me inspiram diariamente pela forma como se jogam em suas iniciativas: Bruno Brito (Arado), Julio Fontes (Coletividad), Lígia Garcez (All-o-Vegan), João Livra (Chocolate Notebooks), Cristina Ruggero (Yoga Ananda), Rodrigo Gondim & Rebeca Prado (Miligrama e outros mil negócios) Stefano Maccarini (Tefopress e outras mil iniciativas)… a lista é muito maior do que esse recorte e sinto que sou uma mistura de todas as pessoas com quem convivo e/ou que me influenciam. Pode parecer óbvio, mas eu também não seria quem sou hoje se não fosse o convívio diário com o Guilherme e a Giulia.
GIULIA Sempre fui inspirada por muitas pessoas. Uma delas é a Miriam Fagundes, minha mãe, que sempre me incentivou profissionalmente – nos cursos de desenho, no incentivo a fazer curso técnico de comunicação visual, no apoio financeiro durante a graduação entre mil outras coisas – sem todo esse apoio, possivelmente eu não estaria aqui. Outra delas é a Sica (quem inclusive me apresentou o design), uma professora incrível que tive a oportunidade de conhecer durante o curso técnico; a designer Bea Feitler, pela sua forma de projetar e lidar com o design; a maioria dos designers entrevistados pelo podcast Diagrama, que ao compartilharem suas experiências como designers, me incentivam a querer mais, como por exemplo: Felipe Rocha e Tereza Bettinardi; e sem dúvidas, o Guilherme e o Giovani, pela forma como lidam com o design e suas crenças e visões de mundo que se refletem diretamente na maneira como lidam com o Daó.