Refúgio Criativo

Jackson Peixer e Miguel Cañas Martins contam como criaram o Atlas e a ideia do Refúgio Criativo.

“Viver o momento presente é estar inteiro e esse sentimento é um gatilho importante na busca por idealizações pessoais, aquilo que cada um julga importante. A partir daí a entrega toma outras proporções e o empenho no que se faz é potencializado.”

Em qual etapa da vida vocês decidiram ser o que são hoje, pessoalmente e profissionalmente?

MIGUEL É difícil perceber onde uma história começa, onde se dá o gatilho. Muitas coisas acontecem em nossas vidas que vão nos direcionando. Pode ser genética, influência ou as circunstâncias. O que sim sou consciente é que sempre fui fascinado por desenhar, e acho que foi o desenho que me levou a gostar de arte e decidir, ainda na infância, a cursar arquitetura e depois o mestrado em design, onde justamente discuti alguns dos processos que contribuíram para a concepção do Refúgio Criativo. Essa é a parte da profissão.

Pelo lado pessoal entram outros ingredientes e influências de infância. Meu pai, agrônomo e professor universitário, natural do interior do Rio Grande do Sul, é um estudioso das questões do meio ambiente e da sustentabilidade. Minha mãe é de Tanger, no Marrocos, professora da engenharia e ligada às artes, praticante de yoga, curiosa do Budismo e do astral. E minha irmã, arquiteta dedicada à preservação do patrimônio, é espanhola de Madrid, e um ser de luz de alta sensibilidade e múltiplos interesses, cujo coração gigante me inspira muito.

Hoje vejo que essa mistura multicultural e complementar na qual cresci formou o que sou hoje e a maneira como me movimento profissionalmente, e percebo que as discussões que levamos para o Atlas e os Refúgios carrego em mim desde sempre, aliando a relação com a natureza, identidade, território, interdisciplinaridade, espiritualidade, autoconhecimento e potencial criativo. E esses são alguns dos ingredientes que hoje procuro transmitir para meus filhos, que são meu maior combustível e motivação para tudo isso.

Miguel Cañas Martins, sócio-fundador do Refúgio Criativo. Imagem: Max Schwoelk

JACKSON Respondendo a questão dessas etapas em que tomamos essa decisão, eu posso citá-las como sendo momentos:

O momento em que decidi enfrentar o desafio de adentrar a indústria, aos 14 anos, com o objetivo do aprender colocando a mão na massa: com um pai que já atuava em um campo criativo, tendo o desenho como forma de materializar ideias, lembro de realizar que precisava colocar à prova, na prática, se era possível viver de alguma maneira daquele viés, se poderia atuar em alguma profissão que carregasse aquele DNA.

Depois veio o momento de deixar o já confortável posto em busca da aventura de empreender, e nesse processo surgiu o escritório de design Firmorama, no qual atuo até hoje, juntamente com amigos que conheço desde os tempos da escola e outro que encontrei ao longo dessa trajetória.

E o terceiro momento, em 2012, quando percorri um caminho solitário bastante intenso em busca de autoconhecimento, questionando e ampliando o espectro de compreensão a respeito de minha relação com a espiritualidade, o sagrado, a ancestralidade e muitas outras questões. Além da decisão, tomada neste mesmo ano como desdobramento de toda essa busca, de que queria passar pela experiência de tornar-me pai - essa, sim, a mais importante de todas elas, sem dúvida nenhuma.

Jackson Peixer, sócio-fundador do Refúgio Criativo. Imagem: Miguel Cañas Martins

Como nasceu o Refúgio Criativo?

MIGUEL A ideia dos Refúgios nascia durante o processo de construção do próprio Atlas. Sempre fomos muito curiosos com relação às questões subjetivas ligadas ao processo criativo e esses assuntos estavam presentes em nossas conversas, mesmo fora do trabalho. Esse foi o tema em que imergi no mestrado e que nos ajudou a clarear tais reflexões ligadas às etapas imateriais, de preparação de cada processo criativo, fosse ele de arquitetura, design ou outros campos e territórios. Nesse diálogo cabia psicologia, ancestralidade, autoconhecimento, cadernos, sociologia, neurociência e espiritualidade. Em certo momento sentimos a necessidade de transformar as anotações de nossos cadernos em um experimento real, uma vivência em que pudéssemos sentir aquilo que era só teoria. O Refúgio e o Atlas surgem, portanto, de forma integrada, fruto dessas discussões.

JACKSON Para tirarmos do papel a proposta do Refúgio Criativo, prototipamos uma experiência prática associada ao diálogo, tendo a natureza como plataforma. Assim nasceu a primeira edição do Refúgio, a qual tinha como objetivo a discussão e criação coletiva do projeto de uma cabana, sendo o desenho e a colaboração nosso norte, aliados às questões de foco e atenção plena. Juntando nossas experiências, saímos da teoria e realizamos uma vivência que nos fez compreender na prática os conceitos do que vínhamos conversando.

Refúgio Criativo 1. Imagem: Entremonte

MIGUEL Após este primeiro protótipo, o impacto percebido em cada participante foi tão grande e intenso, que os Refúgios tornaram-se um organismo vivo. Toda edição carrega o DNA daquilo que descobrimos no primeiro experimento, porém sabemos que cada encontro possui um potencial singular, uma união de ingredientes que é intransferível, e o principal, que é o acaso, nos reserva as surpresas por meio das quais nos permitimos revelar. O resultado são descobertas com forte carga conceitual, emocional e autenticidade - este é o principal legado dos Refúgios Criativos.

Participantes da primeira edição do Refúgio Criativo. Imagem: Entremonte

Acho interessante o pensamento que norteia os encontros. A vida das pessoas em geral, tem se tornado bastante corriqueira e cheia de distrações. E se tratando de profissionais que trabalham criando coisas para as pessoas usarem no seu dia a dia, como vocês acham que essas distrações afetam a forma como fazemos nosso trabalho e o resultado em si?

JACKSON A quantidade de informação à qual temos acesso hoje não é realmente o problema em si, mas sim a maneira com que digerimos tudo isso, sem a análise e tempo necessários. Sofremos com o excesso de oportunidades e a ansiedade torna-se um dos maiores problemas com o qual nossa geração precisa lidar no cotidiano.

Essas distrações nos dão a falsa sensação de que jamais fomos tão bons em flutuar em meio a tarefas múltiplas, porém, é aí que mora uma das grandes armadilhas do nosso dia a dia, pois está comprovado que temos limites cognitivos, especialmente na qualidade da absorção do conteúdo.

E com múltiplos caminhos à frente, sem uma bússola alinhada, é comum sentirmos verdadeiras travas criativas. Acreditamos que para haver esse alinhamento, cada pessoa precisa trabalhar sobre si e encarar-se - algo que, ao longo de nossas vidas, raramente somos encorajados a fazer.

MIGUEL Por isso, o que torna os Refúgios Criativos especiais, é a intensidade com que se percebe cada momento e que se abre espaço para exercitar essa atenção, em si e com os outros. E o desafio é levar esse aprendizado para o dia a dia, essa é a graça da batalha que devemos travar.

(1) Refúgio Criativo #3. Imagem: Danilo Xavier. (2) Momento simbólico no Refúgio Criativo #3, em meio à trilha para o Monte Camapuã, no Paraná. Imagem: Danilo Xavier

JACKSON Portanto, embora a concentração e o foco sejam ingredientes obviamente importantes neste processo, eles somente surgem numa jornada de autoconhecimento. Esse componente é fundamental para um despertar criativo, pois não há dúvidas da diferença que faz quando encontramos esse equilíbrio e harmonizamos nossos caminhos e questões internas - e, dessa forma, como pode ser produtivo o trabalho de uma pessoa afinada consigo mesma.

Como voltar para a vida agitada do dia a dia depois da experiência? Quais transformações vocês tiveram desde o primeiro encontro?

JACKSON É comum ouvirmos relatos de participantes dizendo que sentem-se anestesiados (no bom sentido!), afinal, são dias de maior elasticidade do tempo e cargas de foco e atenção que excedem o habitual. A energia permanece alta por semanas e o desafio está em mantê-la dessa maneira.

Há dois fatores que ajudam nesse processo: um deles é o senso de grupo e coletividade que cada encontro fortalece e é alimentado por nós do Atlas, criando áreas de interação para a partilha das experiências nas semanas seguintes. Olhar para o outro é um hábito que acabamos perdendo por conta principalmente da sociedade virtual; ao trazer essa essência de volta, retomamos uma atitude coletiva intrínseca do ser humano.

O outro fator é que normalmente adquire-se um desejo de manter essa fagulha acesa, tendo maior consciência de suas ações, gerando mais empatia com as pessoas, olhando seu próprio processo criativo, analisando-o e trilhando o caminho do autoconhecimento. Experimentando e vivenciando tudo isso, por dois ou quatro dias, e tendo ingredientes que o ajudam a realmente decantar essa consciência adquirida, é natural que se acenda uma vontade de tornar-se um buscador.

Atividade prática no Refúgio Criativo #1. Imagem: Entremonte

Havia comentado com Jackson, uma vez, que a forma como o tema é apresentado parece um pouco complexa e um tanto mística. Essa percepção é algo comum (que acontece com frequência)? Como desconstruir esse conceito?

MIGUEL Acreditamos que estamos atraindo pessoas que já possuem um alinhamento a respeito daquilo que apresentamos nas fases de divulgação de cada encontro. Mas é compreensível que se tenha essa percepção e ela não deixa de estar correta também, pois tratamos de questões muitas vezes encaradas como complexas em nossa sociedade, mas que são simples em essência. Estudos a respeito de nossa gestão de energia, meditação ou o poder de encontrar relações no acaso, são assuntos tão científicos quanto místicos, a diferença é o prisma pelo qual eles são enxergados.

MIGUEL Entendemos que um exercício importante para a criatividade é alimentar nosso interior, e ao buscarmos esse alinhamento estamos estabelecendo uma conexão com um universo tão amplo quanto inexplicável, o que acaba abrindo espaço para outros tipos de percepções e que, nesse sentido, podem se tornar mais complexas para explicar, mas mais fáceis de se sentir.

Dentro da “oficina de saberes e fazeres” de Ronaldo Fraga, em Belo Horizonte, no Refúgio Criativo {3}. Imagem: Danilo Xavier.

Vocês falam muito sobre focar no momento presente. Por que isso é tão importante?

JACKSON Uma das coisas que podem atrapalhar nosso processo criativo é estarmos, mentalmente, em outro lugar, perambulando sem norte entre as referências do passado e as incertezas do futuro. Precisamos urgentemente começar a perceber por nós mesmos, sentir na pele, ver com os próprios olhos e assim ter aprendizados genuinamente nossos.

MIGUEL Viver o momento presente é estar inteiro e esse sentimento é um gatilho importante na busca por idealizações pessoais, aquilo que cada um julga importante. A partir daí a entrega toma outras proporções e o empenho no que se faz é potencializado. A sensação de pertencimento, de propósito, de alegria em se auto conhecer tornam-se os principais combustíveis para um bom trabalho.

O que essa atividade busca atingir nos participantes?

MIGUEL O resultado é diferente para cada pessoa. Alguns saem com mais perguntas, outros encontram respostas. Mas, certamente, um estado de maior consciência é despertado, e este estado pode ser o que faltava para reabilitar (ou descobrir) sentimentos importantes em um caminho criativo, como segurança, identidade, integridade, conexão, compaixão, autonomia, etc.

Momento de contemplação no Monte Camapuã — Refúgio Criativo {3}. Imagem: Danilo Xavier

JACKSON A caminhada é longa, mas começa ali, no exato momento em que a conexão acontece e a pessoa descobre sozinha seu caminho. Ela saberá que cada passo vem com a conquista de novos territórios à medida que descobre novas necessidades, desejos ou interesses. É preciso confiar em si, estar disposto, ter fé e seguir a intuição. Seguir com leveza, mas aguentar firme. E quando encontrar seu lugar — o que significa estar convicto, ter princípios e sonhos — não abrir concessões.

Time de participantes da terceira edição do Refúgio Criativo. Imagem: Danilo Xavier

MIGUEL Além disso, do ponto de vista do coletivo, o Refúgio Criativo provoca uma noção de grupo muito forte, despertando sentimentos como empatia e colaboração. Como resultado pós-refúgio, o que se cria é uma rede muito forte de ecossistemas criativos interconectados, dessas vidas em expansão que continuam compartilhando informação, trabalhos, os desafios e descobertas da caminhada de cada um.

O que é o Atlas e qual o seu propósito?

MIGUEL O Atlas é uma organização que nasceu inicialmente da interação de pensamentos de profissionais das áreas do design e da arquitetura, e que hoje também inclui a influência de outros saberes e disciplinas criativas, ampliando seu universo de trabalho. Mas originalmente surgiu da união de outras duas empresas: a Metroquadrado, de arquitetura — da qual também sou sócio ao lado de outros amigos arquitetos, o Luis Eduardo S.Thiago e o Marcos Deretti — e o Firmorama, estúdio de design que o Jackson também é sócio junto com os designers Cleiton Nass, John Krager e Beto Shibata. E dessa forma nos organizamos nas frentes de atuação do Atlas, movimentando desde os projetos voltados para empresas às vivências e workshops criativos.

Base do Atlas, em Joinville, Santa Catarina. Imagem: Cleiton Nass

JACKSON Neste sentido, atuamos como uma organização de pessoas dedicadas ao desenho de experiências e consultoria criativa, sendo um laboratório voltado para a experimentação de projetos especiais de empresas e pessoas, interessadas em utilizar ferramentas de imersão para processos de descoberta, consultorias e desenhos de novos produtos, projetos e experiências.

Encontros criativos na Base do Atlas. Imagem: Cleiton Nass

JACKSON Além disso, gostamos de potencializar a discussão de formas alternativas de trabalho por meio da promoção de ações de compartilhamento de conhecimento, que discutam e inspirem novos caminhos, mais abertos e interligados, como forma de capacitação, desenvolvimento e transformação pessoal.

Oficina de colagem e processos criativos com o sócio do Atlas, Beto Shibata. Imagens: Cleiton Nass

Quais projetos o Atlas desenvolve hoje em dia?

MIGUEL Alguns dos projetos que estamos trabalhando hoje em dia têm relação com novas edições dos Refúgios Criativos e outros desdobramentos, os quais estamos desenhando a quatro mãos com nossa querida amiga, a psicanalista Mônica Godoy, que já esteve conosco em duas edições e grande cúmplice de jornada nesta caminhada.

Em paralelo seguimos sempre envolvidos com projetos relacionados à experiência e direção criativa, como uma exposição de arte, onde estamos atuando desde a expografia e arquitetura até a identidade e estratégia de comunicação; e o projeto de um novo produto no campo da habitação, uma marca nova que abordará arquitetura, território e identidade.

JACKSON Também somos sócios de uma startup chamada Biosoftness, na qual atuamos como gestores de marca e produto. Esse projeto trata-se do desenvolvimento de um produto inovador em sua categoria: é um protetor de roupas que funciona através de nanocápsulas biodegradáveis e biocompatíveis, que pretende modificar a maneira como cuidamos de nossas roupas, gastando menos água, dinheiro e tempo.

Encontros e trocas na Base do Atlas. Imagens: Cleiton Nass

E por último estamos sempre debruçados na organização de novas ações que ocorrem em nossa Base de Interação, em Joinville, como todo ano fazemos, com uma agenda voltada para workshops, palestras e oficinas de curta duração, sempre tendo como temas o cerne que forma o Atlas.

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